segunda-feira, 23 de maio de 2011

PROGRESSÃO DE REGIME E LIVRAMENTO CONDICIONAL

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Progressão de Regime Prisional e Livramento Condicional diante das modificações introduzidas pela Lei 10.763, de 12 de novembro de 2.003, e pela Lei nº 10.792, de 1º de dezembro de 2.003.


César Dario Mariano da Silva

8º PJ do II Tribunal do Júri


O sistema progressivo de regime foi instituído com vistas à reinserção gradativa do condenado ao convívio social. Ele cumprirá a pena em etapas e em regime cada vez menos rigoroso, até receber a liberdade. Durante esse tempo, o preso será avaliado e só será merecedor da progressão caso a sua conduta assim recomende.

O mérito do condenado para a progressão de regime prisional (requisito subjetivo) diz respeito a seu bom comportamento carcerário e aptidão para retornar ao convívio social. Destarte, para que possa obter a progressão, em nosso entender, não basta o bom comportamento carcerário, sendo necessário, também, que esteja apto a ser colocado em regime menos rigoroso.

Um dos instrumentos empregados para a verificação da aptidão para a progressão de regime é o exame criminológico, que será realizado quando for necessário.

O exame criminológico será realizado obrigatoriamente nos presos que se encontrem no regime fechado e facultativamente nos que estão no regime semi-aberto (art. 8º da LEP). É uma espécie de exame de personalidade e tem a finalidade de obter elementos indispensáveis à classificação do sentenciado e à individualização da execução penal. Por isso, examina a personalidade do criminoso, sua periculosidade, eventual arrependimento, possibilidade de voltar a delinquir, etc., propondo as medidas necessárias para a recuperação. Por se tratar de perícia oficial, deve ser realizado por profissionais capacitados (psicólogos e psiquiatras).

Com efeito, o condenado com mal comportamento carcerário, que não queira trabalhar, com dificuldades para obedecer o regulamento, que exiba sinais de periculosidade, etc, demonstra com sua conduta não ser merecedor do benefício da progressão de regime prisional. É importante salientar que, em sede de execução penal, vige o princípio do "in dubio pro societate" (RT 744/579)

A classificação do condenado será feita por Comissão Técnica de Classificação, que é o órgão responsável pela elaboração do programa individualizador da execução da pena privativa de liberdade (art. 6º da LEP).

A Comissão Técnica de Classificação existe em cada estabelecimento prisional e é presidida pelo diretor e composta, no mínimo, por dois chefes de serviço, um psiquiatra, um psicólogo e um assistente social, quando se tratar de pena privativa de liberdade. Nos demais casos, a Comissão atuará junto ao Juízo da Execução e será integrada por fiscais do Serviço Social (art. 7º da LEP).

Para a correta individualização da pena privativa de liberdade, a Comissão Técnica de Classificação deve valer-se do exame criminológico, nos casos em que ele é exigido (regime fechado), ou quando ele for necessário (regime semi-aberto). A fim de obter dados reveladores acerca da personalidade do condenado, a Comissão poderá entrevistar pessoas; requisitar, de repartições ou estabelecimentos privados, informações e dados a respeito do condenado; realizar outras diligências e exames necessários (art. 9º da LEP). Não havendo exigência ou necessidade da realização do exame criminológico, a classificação será feita por exame de personalidade comum, em que serão colhidos elementos para a elaboração de um programa de individualização da execução da pena.

Individualizar a pena consiste em propiciar ao preso as condições necessárias para que possa retornar ao convívio social. A individualização deve ater-se a métodos científicos, nunca improvisados, iniciando-se com a classificação dos detentos, de forma que possam ser destinado aos programas de execução mais apropriados de acordo com suas necessidades pessoais. A individualização da pena é direito constitucional previsto no artigo 5º, XLVI, 1ª parte, da CF.

A Lei de Execuções Penais (LEP), em seu art. 112, dispõe que a pena privativa de liberdade será executada em forma progressiva com a transferência para regime menos rigoroso, a ser determinada pelo juiz, quando o preso tiver cumprido ao menos um sexto da pena no regime anterior e ostentar bom comportamento carcerário, comprovado pelo diretor do estabelecimento, respeitadas as normas que vedam a progressão. Prevê, ainda, a norma em seu § 1º, que decisão será sempre motivada e precedida de manifestação do Ministério Público e do defensor.

A Lei nº 10.792, de 1º de dezembro de 2.003, deu nova redação ao artigo 112 da LEP, não mais exigindo que o mérito do condenado lhe seja favorável à progressão, bem como a manifestação do Conselho Penitenciário e exame criminológico, quando necessário.

Embora a lei tenha mantido o sistema progressivo, instituiu como requisitos para a progressão de regime apenas que o preso tenha cumprido ao menos um sexto da pena no regime em que se encontra e que ostente bom comportamento carcerário, atestado pelo diretor do estabelecimento prisional.

Por outro lado, as normas que vedam a progressão de regime prisional, no caso a Lei dos Crimes Hediondos, permanecem íntegras, uma vez que o artigo 112, "caput", parte final, da LEP, em sua nova redação, dispõe expressamente que essas normas devem ser respeitadas. Assim, cometendo o agente crime hediondo, tráfico ilícito de entorpecentes ou drogas afins, ou terrorismo, deverá cumprir a pena em regime integral fechado, sendo vedada a progressão de regime, por expressa disposição legal do art. 2º, § 1º, da Lei nº 8.072/1990.

Além do bom comportamento carcerário do condenado, para que possa ser deferida a progressão, há necessidade do cumprimento de pelo menos um sexto da pena no regime em que se encontra (requisito objetivo), sendo vedada a progressão por salto, ou seja, pulando um dos regimes.

Outra imposição da lei para a progressão é a prévia manifestação do Ministério Público e do Defensor, e que a decisão judicial seja motivada (art. 112, § 1º, da LEP). Observamos que a manifestação do Ministério Público e a fundamentação da decisão judicial sempre foram requisitos necessários nos procedimentos afetos às execuções penais. O Ministério Público possui a atribuição de fiscalizar a execução da pena e da medida de segurança, oficiando em todos os processos e incidentes da execução (art. 67 da LEP). À Defesa cabe defender os interesses do condenado, podendo requerer o que de direito para a obtenção da progressão de regime.

Entretanto, mesmo com a modificação do artigo 112 da LEP, entendemos que o Juiz pode determinar o exame criminológico quando o preso tiver praticado crime doloso com o emprego de violência ou grave ameaça à pessoa, ou seja, se houver necessidade de ser aferido o mérito do condenado. Isso porque o artigo 33, § 2º, do Código Penal, de forma genérica, diz que a pena privativa de liberdade deve ser executada de forma progressiva e segundo o mérito do condenado. Aliás, para a concessão do livramento condicional ao condenado por crime doloso, cometido com o emprego de violência ou grave ameaça à pessoa, o artigo 83, parágrafo único, do Código Penal, exige a constatação de condições pessoais que façam presumir que o liberado não voltará a delinqüir, sendo que essa prova é feita por meio de exame criminológico. De tal sorte, para a progressão de regime, que também redundará no retorno do preso ao convívio social, mesmo no regime semi-aberto (trabalho externo, saídas temporárias, etc)  , igualmente deve ser exigido esse exame para verificar se a periculosidade persiste.

Dessa forma, se o Juiz das Execuções Penais tiver dúvidas sobre a cessação da periculosidade do condenado, deverá condicionar a progressão de regime prisional ao exame criminológico. Seria um contra-senso permitir a progressão, ou até mesmo a liberdade, para alguém que ainda não possui condições de retornar ao convívio social, mostrando-se perigoso para a coletividade. Assim, se o exame criminológico concluir que o preso não tem condições de progredir de regime prisional, o juiz deverá indeferir a progressão, dada à natureza do sistema progressivo de regime, que pressupõe a readaptação gradativa do preso à liberdade.

Infelizmente, essa nova lei veio contrariar os anseios da sociedade, que exige punições mais rígidas para os criminosos violentos. Da forma como a lei foi criada, inúmeros criminosos perigosos e que não possuem condições de retornar ao convívio social poderão ser colocados na rua, uma vez que surgirão decisões no sentido de que basta o cumprimento de um sexto da pena e bom comportamento carcerário, atestado pelo diretor do estabelecimento prisional, para que o condenado possua o direito subjetivo de progredir de regime prisional.

O § 4º do artigo 33 do Código Penal, acrescido pela Lei nº 10.763, de 12 de novembro de 2.003, estabelece que o condenado por crime contra a administração pública terá a progressão de regime de cumprimento de pena condicionada à reparação do dano que causou ou à devolução do produto do ilícito praticado, com os acréscimos legais. Os crimes contra a administração pública vêm descritos nos artigos 312 a 359-H do Código Penal.

Cumpre-nos ressaltar que não são todos os delitos que causam dano efetivo à administração pública ou que resultam produto em decorrência da sua prática. Produto do crime é a coisa adquirida diretamente com a prática criminosa (ex: coisa subtraída), ou mediante sucessiva especificação (ex: jóia feita com ouro desviado), ou conseguida mediante alienação (ex: dinheiro da venda do objeto apropriado), ou criado com o crime (ex: moeda falsa). Assim, produto do crime é todo bem material conseguido direta ou indiretamente com a prática criminosa.

Há delitos que somente ocasionam dano potencial sem que ocorra prejuízo material concreto para a administração pública ou a possibilidade da obtenção de algum proveito material para o sujeito (produto do crime). Nesses casos, não há o que ser indenizado ou restituído. Assim, a condição somente será implementada quanto aos crimes que resultem dano material efetivo à administração pública ou que gerem proveito material para o criminoso, como nos delitos de peculato-tipo e peculato-furto (o peculato culposo possui regra própria), peculato mediante erro de outrem, corrupção passiva, concussão, sonegação de contribuição previdenciária, etc.

Observamos, ainda, que a norma não contempla a hipótese de o sujeito deixar de indenizar a administração pública ou de restituir o produto do crime, quando não puder fazê-lo. De acordo com o dispositivo, o sujeito, para progredir de regime, deve necessariamente reparar o dano de maneira genérica, seja restituindo o produto ilicitamente auferido ou indenizando a administração pública e terceiro eventualmente prejudicado, com as devidas atualizações monetárias.

Por outro lado, a ausência da devolução do produto do ilícito ou da reparação do dano impede somente a progressão de regime de cumprimento de pena, não sendo óbice para outros benefícios, como a graça, o indulto, o livramento condicional, etc.

Diante da modificação do artigo 112 da LEP operada pela Lei nº 10.792/2003, passou a ser necessária a manifestação da defesa antes da decisão sobre a concessão do livramento condicional. Dispõe o § 2º desse artigo que "Idêntico procedimento será adotado na concessão de livramento condicional, indulto e comutação de penas, respeitados os prazos previstos nas normas vigentes". Por sua vez, diz o § 1º do referido dispositivo legal: "A decisão será sempre motivada e precedida de manifestação do Ministério Público e do defensor". Assim, o idêntico procedimento refere-se ao contido no § 1º, ou seja, a decisão deverá ser sempre motivada e precedida de manifestação do Ministério Público (que já era necessária) e da Defesa, observando que qualquer decisão judicial sempre será motivada, sob pena de nulidade (art. 93, IX, da CF). Cumpre-nos salientar que o "caput" do art. 112 da LEP não trata de procedimento, mas de requisitos específicos para a concessão da progressão de regime prisional, de nada influindo nos requisitos necessários para a concessão do livramento condicional.

Entendemos, portanto, que os requisitos para o livramento condicional contidos no Código Penal não sofreram qualquer modificação em face dos novos dispositivos introduzidos na LEP. Assim, embora tenha sido retirada a atribuição do Conselho Penitenciário em manifestar-se sobre a concessão do livramento condicional (art. 70, I, da LEP), o artigo 131 do mesmo diploma legal continua a exigir a referida manifestação. Também não houve qualquer mudança no que concerne à necessidade de demonstração, por exame criminológico, de condições pessoais que façam presumir que o condenado não voltará a delinqüir, quando a condenação for decorrente de crime doloso praticado com o emprego de violência ou grave ameaça à pessoa (art. 83, parágrafo único, do CP).

quarta-feira, 18 de maio de 2011

A recusa na aceitação da transfusão de sangue: o caso das Testemunhas de Jeová à luz do Neoconstitucionalismo

MARIA DA PENHA DOS ANJOS ALVES



RESUMO 
Este trabalho analisa, à luz do Neoconstitucionalismo, a questão da religião das Testemunhas de Jeová que se recusam a receber transfusões de sangue por questões unicamente religiosas. Demonstra que tal recusa é uma expressão do culto religioso que professam e, portanto, um direito fundamental assegurado pela Constituição Brasileira de 1988, que deve ser respeitado pelo aplicador do direito ao decidir o caso concreto, utilizando-se dos princípios da razoabilidade, proporcionalidade, dignidade da pessoa humana, autodeterminação bem como do direito à liberdade religiosa e a privacidade, levando-se em conta a existência de medicamentos e técnicas alternativas ao uso medicinal do sangue. Os resultados levam a concluir que, na recusa à transfusão de sangue, por parte das Testemunhas de Jeová, não existe colisão entre o Direito à vida e o Direito à liberdade religiosa, sendo que a decisão que autoriza a transfusão de sangue em paciente Testemunha de Jeová, mesmo após sua declaração de vontade expressa, firmada em documento legalmente válido é uma grave violação de direitos humanos fundamentais. A pesquisa exploratória e o método dedutivo norteiam o estudo permitindo que com argumentação eficiente se atinja a conclusão almejada. É o início de uma caminhada que objetiva eliminar a discriminação e o preconceito velado introduzido na sociedade por meio de reportagens de cunho depreciativo acerca da atitude das Testemunhas de Jeová.
Palavras-Chave: Testemunhas de Jeová. Transfusão de Sangue. Tratamentos Alternativos. Neoconstitucionalismo. Pós-positivismo. Proporcionalidade. Razoabilidade. Direitos Humanos. Dignidade Humana.


1 INTRODUÇÃO
O tema em foco suscita uma questão relevante no contexto da sociedade moderna, o grupo religioso denominado Testemunhas de Jeová se recusa terminantemente a receber transfusões de sangue, mesmo sob a alegação médica de iminente risco de morte. Tal recusa desperta, não raro, a atenção da mídia que, na maioria das vezes, de forma sensacionalista, veicula informações incompletas, fazendo surgir em determinada parcela da sociedade, certa repulsa por esse grupo religioso, rotulado como fanático, suicida, assassino de crianças e outros termos pejorativos e de cunho preconceituoso.
Tal visão preconceituosa é equivocada, pois as Testemunhas de Jeová esperam que se lhes administrem alternativas médicas e tratamentos sem sangue que consideram seguras e eficazes e que são aceitáveis do seu ponto de vista religioso. Elas prezam a vida, e sua firme posição contra o uso inadequado do sangue não significa que, em caso de iminente risco de morte ensejado pela necessidade de transfundir sangue, ficarão inertes esperando que o pior aconteça, tanto é que têm promovido o progresso científico de modo que a comunidade médica em geral já reconhece que a atitude das Testemunhas de Jeová permitiu grandes avanços nas descobertas e aprimoramentos de técnicas alternativas ao uso do sangue.
As Testemunhas de Jeová defendem suas crenças de maneira respeitosa, buscando, junto aos médicos, uma solução alternativa ao uso do sangue que conduza a um resultado positivo e satisfatório para o médico e o paciente, e que se harmonize com suas crenças.    
Assim, cumpre aos detentores do saber jurídico empreender esforços a fim de fomentar discussões acerca dos valores que tal questão encerra, pois, sendo o Direito uma ciência social com bases filosófica, sociológica, ética e moral, cabe a seus operadores acirrar as discussões acerca de fatos sociais relevantes para a comunidade em geral, fornecendo soluções coerentes aos conflitos de interesses fundamentais, garantindo a concretização dos direitos das minorias, como ocorre no caso das Testemunhas de Jeová.
Com isso em mente, a seguinte problemática é suscitada a nortear o presente estudo: O paciente que recusa transfusão de sangue com base em princípios religiosos, mesmo em iminente risco de morte, encontra respaldo na legislação brasileira? Além disso, como o poder judiciário lida com a recusa da Associação das Testemunhas Cristãs de Jeová de recusar tratamento médico à base de sangue?
Neste ínterim, tem-se a acanhada ambição de provar que a recusa à transfusão de sangue, por parte das Testemunhas de Jeová, encontra respaldo na Constituição Federal de 1988 e em todo o ordenamento jurídico brasileiro, sendo totalmente ilegal, imoral e inadequada, a decisão que autoriza a transfusão forçada em paciente Testemunha de Jeová, mesmo após sua declaração de vontade expressa em documento legalmente válido. Esse é, em princípio, o objetivo do presente estudo.
Ressalta-se que muito embora haja aqueles que rejeitam as transfusões por outros motivos, as Testemunhas de Jeová o fazem por uma questão estritamente religiosa. Sua consciência treinada pela bíblia não lhes permite violar leis, decretos e princípios promulgados por Deus. Têm bem arraigado valores morais, religiosos e éticos ao qual se apegam firmemente.
Pretende-se ainda tecer uma formulação teórica, sob o prisma do Neoconstitucionalismo, que permita solucionar os conflitos de interesses fundamentais envolvidos na questão das Testemunhas de Jeová de recusar a transfusão de sangue mesmo sob alegação médica de iminente risco de morte.
Para tanto recorrer-se-á ao método dedutivo, visando ao caminho das consequências, pois, segundo Pádua (2000, p. 46) “(...) uma cadeia de raciocínios em conexão descendente, ou seja, do geral para o particular, leva à conclusão”. Com esse método, partindo-se de teorias e leis gerais, pode-se chegar à determinação ou previsão de fenômeno ou fatos particulares. Assim, urge percorrer caminhos fundamentais como os do pós-positivismo, passando pelos princípios da ponderação de interesses fundamentais, da razoabilidade, da proporcionalidade, da dignidade da pessoa humana, da liberdade religiosa, o direito à privacidade e à autodeterminação bem como à existência de técnicas e medicamentos alternativos, ao uso do sangue, de forma a demonstrar que a recusa das Testemunhas de Jeová não se encontra em rota de colisão com o direito à vida e a decisão judicial que permite a transfusão forçada, sob essa alegação, constitui-se em grave agressão aos direitos humanos fundamentais tutelados na Constituição Federal de 1988.
Anseia-se, ainda que de forma modesta e mesmo que em pequena escala, possibilitar uma visão menos preconceituosa por parte de acadêmicos das cadeiras de medicina, enfermagem, serviço social, direito, bem como da comunidade médica, jurídica e da sociedade em geral acerca do assunto, a fim de tornar possível a concretização do direito de que é detentora essa pequena parcela da sociedade, a saber, de ter respeitado e atendido sua súplica pelo direito a expressar sua liberdade de culto também na escolha de tratamento médico.
Tais pretensões surgiram a partir das seguintes hipóteses previamente estabelecidas:
O artigo 5º da Constituição de 1988 permite uma interpretação favorável à organização das Testemunhas Cristãs de Jeová frente à decisão de não aceitar transfusões de sangue com base em princípios religiosos.
O Neoconstitucionalismo é uma premissa atual que deve ser sentida pelo poder judiciário ao decidir o caso concreto.
A decisão que obriga a transfusão em paciente Testemunha de Jeová é uma gravíssima violação de direitos humanos fundamentais.
A fim de restar comprovada a veracidade de tais afirmativas no primeiro capítulo é suscitada a importância que o sentimento de religiosidade e a religião simbolizam para o indivíduo, bem como o tratamento constitucional dado ao tema. Já no segundo capítulo destaca-se a relevância da questão da santidade do sangue para os adeptos da religião das Testemunhas de Jeová bem como a existência de medicamentos e técnicas que substituem o uso medicinal do sangue. O terceiro capítulo analisa o caso das Testemunhas de Jeová sob a ótica Neoconstitucionalista, o leva a concluir que inexiste, neste caso específico, colisão entre o direito à vida e à liberdade religiosa.












2 OS VÁRIOS CONCEITOS RELIGIOSOS E OS DILEMAS DO MUNDO MODERNO

2.1 O SENTIMENTO DE RELIGIOSIDADE NA CONTEMPORANEIDADE
Nas ultimas décadas a humanidade assistiu impressionada a inúmeras transformações. Em todos os campos e áreas o saber humano tem evoluído e descobertas cada vez mais incríveis têm sido feitas pelo homem em diversos campos, tais como a produção de alimentos geneticamente modificados (transgênicos), a clonagem de animais, o uso medicinal do sangue, o uso de células tronco embrionárias, entre outros. Entretanto, apesar dos benefícios trazidos por algumas dessas descobertas, como a sociedade humana esta estruturada sobre princípios de moral, ética e religiosidade, surgem questionamentos acerca da possibilidade de sua concretização sem que se violem preceitos morais e éticos milenarmente inseridos na sociedade. Ademais o mundo moderno, com toda a sua tecnologia, tem produzido cada vez mais catástrofes, e questões ainda mais polêmicas têm gerado discussões e desentendimentos entre diversos segmentos da sociedade. No Brasil especula-se acerca da possibilidade de autorização da lei para práticas condenáveis do ponto de vista religioso tais como a legalização ou a liberação do uso de drogas e entorpecentes, o reconhecimento da união homoafetiva, a legalização da prática de aborto, a eutanásia e a pena de morte.
Tais dilemas, consequência de uma sociedade dita desenvolvida e politizada, trazem à baila uma questão fundamental acerca do modo como o “Originador” da vida encara tais questões. Será que com a evolução da sociedade Deus mudou o seu conceito sobre a vida, a moralidade, a fé, a obediência e ao uso correto do sangue?
Na Bíblia Sagrada (1984, p. 1280), Deus fornece a resposta em Malaquias 3:6 “Pois eu sou Jeová; não mudei”.
A história é marcadamente interessante diante dos fatos que se acumulam na chamada “trajetória” humana.
O Holocausto (entenda-se por Holocausto o termo utilizado, após a Segunda Guerra Mundial, especificamente para se referir ao extermínio de milhões de pessoas que faziam parte de grupos politicamente indesejados pelo então regime nazista fundado por Adolf Hitler) e a destruição das sinagogas, em toda a Alemanha, foram praticados em nome de Deus. Israelenses e Palestinos lutam há muitos anos pelo controle da Cidade de Jerusalém, e se matam em nome da Fé. Os Talibãs e seus “fanáticos suicidas” praticam o terrorismo em grande parte do Mundo, para exterminar os “infiéis” cometem todo tipo de atrocidade como, por exemplo, o atentado de 11 de Setembro, supostamente praticado também por “ordem de Deus” (LIMA, 2009, p. 1).
Esses são apenas alguns exemplos de que o sentimento de religiosidade às vezes pode refletir negativamente na sociedade e trazer conseqüências desastrosas, durante um discurso do Raichsteg em 1936, Adolf Hitler ao tentar justificar o massacre dos Judeus declarou o seguinte “Acredito hoje que estou agindo de acordo com o Criador Todo-Poderoso. Ao repelir os Judeus, estou lutando pelo trabalho do Senhor” (LIMA, 2009, p. 1).
A despeito disso, porém o sentimento de religiosidade também é capaz de produzir resultados positivos, como por exemplo, a ajuda humanitária prestada por organizações religiosas a população de Santa Catarina durante o período de cheias que assolaram o estado no ano de 2008.
A própria definição de religião indica que o sentimento de religiosidade se reflete de maneira diversificada em cada individuo tendo em vista seu caráter subjetivo.
Ferreira (1999 p. 1737) define religião como sendo “a crença na existência de uma força ou forças sobrenaturais, consideradas como criadoras do universo, e que como tal devem ser adoradas e obedecidas”. (grifo nosso).
Juridicamente “a religião é um complexo de princípios que dirigem os pensamentos, ações e adoração do homem para com Deus, acaba por compreender a crença, o dogma, a moral, a liturgia e o culto” (MORAES, 2002, p. 73).
Jean Rivero (apud LEIRIA, 2009, p. 5), lança luz sobre a definição do que seja religião:
(A religião) afirma a existência de realidades sobrenaturais, a propósito das quais o homem está em situação de dependência: a religião organiza as relações que esta dependência postula. O crente adere a esta informação, aceita esta organização de suas relações com o sobrenatural. Em vista disso, sua adesão transborda largamente a simples profissão de uma opinião num outro domínio, pois ela comporta não uma mera preferência pessoal e subjetiva, mas a crença numa realidade considerada como objetiva transcendente e superior a todas as outras. Enfim, a religião, e notadamente as grandes religiões monoteístas, como as seitas que delas derivam, exercem sobre o crente uma possessão (emprise) total. Na medida em que elas lhe fornecem uma explicação global do seu destino, elas ditam seus comportamentos individuais e sociais, modelam o seu pensamento e sua ação. Porque afirmam a prioridade da ordem sobrenatural sobre toda ordem humana, conduzem cada crente consequente consigo mesmo a preferir, em caso de conflito entre o poder do Estado e os imperativos de sua fé, a obediência à regra mais alta.
Tais definições indicam a importância da religião para o individuo que busca se orientar pelos dogmas e crenças que livremente escolhe e decide professar, passando a viver de acordo com os princípios morais e éticos por ela delineados. Dessa forma a religião nada mais é do que um modo de vida que cada um elege a fim de se deixar guiar e obedecer.

2.2 A RELIGIÃO NA MODERNA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988
A analítica Constituição Federal Brasileira assegura o direito a liberdade de crença no artigo 5º, entre os Direitos e Garantias Fundamentais, está entre os direitos de primeira dimensão ou direitos da liberdade (BONAVIDES, 2008, p. 563), que permite ao individuo o seu pleno exercício sem a intervenção do Estado, “(...) enquanto não for contrário à ordem, tranqüilidade, e sossego públicos, bem como compatível com os bons costumes” (MORAES, 2002, p. 75).  
O artigo 5º da Carta de 1988 no inciso VI consagra a liberdade de consciência e de crença o livre exercício dos cultos religiosos e a proteção aos locais de culto e suas liturgias, já o inciso VII garante a assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva e o VIII assegura a não-privação de direitos por motivo de crença religiosa, convicção filosófica ou política. A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 foi promulgada sob a proteção de Deus, conforme descrito em seu preâmbulo, apesar de o constituinte declarar o Brasil um Estado laico ou leigo (sem religião oficial), o que indica que os valores espirituais religiosos também constituem a base da República do Estado Brasileiro. De sorte, a idéia de uma Constituição secular em plenitude ainda não faz parte de nossas tradições. (BRASIL, 1988, p)
Na visão de José Afonso da Silva (2001, p. 251-254) a liberdade religiosa se inclui entre as liberdades espirituais e subdivide-se em:
 a) Liberdade de crença, que garante a liberdade de escolha da religião, a liberdade de aderir a qualquer organização religiosa, o direito a mudar de religião ou ainda a liberdade não seguir religião alguma;
b) Liberdade de culto, que consiste no direito ao pleno exercício, sem condicionantes, da fé professada. É a liberdade de expressar em casa ou em público as tradições, cerimônias, princípios, e ritos da religião escolhida;
c) Liberdade de organização religiosa, que diz respeito à possibilidade de estabelecimento e organização das igrejas e suas relações com o Estado.
Ainda Sobre a Liberdade Religiosa Manoel Gonçalves Ferreira Filho (1994, p. 20) destaca:
Tenha se presente que a liberdade religiosa é uma das formas por que se explicita a liberdade... Mais do que isto, é ela para todos os que aceitam um direito superior ao positivo, um direito natural. É o mais alto dentre todos os direitos naturais. Realmente, é ele a principal especificação da natureza humana, que se distingue dos demais seres animais pela capacidade de autodeterminação consciente de sua vontade. 
E Celso Ribeiro Bastos, lançando luz aos aspectos que tal liberdade encerra afirma que (BASTOS, 2002, p. 187):
A religião não pode contentar-se com sua dimensão espiritual, isto é, enquanto realidade ínsita à alma do indivíduo. Ela vai procurar uma externação (...) Poder-se-ia inserir, dentro da liberdade de culto, todas as práticas que envolvessem qualquer opção religiosa do indivíduo. O culto não se exerce apenas em locais pré-determinados, como em igrejas, templos, etc. A orientação religiosa há de ser seguida pelo indivíduo em todos os momentos de sua vida, independentemente do local, horário ou situação. De outra forma, não haveria nem liberdade de crença, nem liberdade no exercício dos cultos religiosos, mas apenas proteção aos locais de culto e as suas liturgias.
Assim, a liberdade de religião se resume ao direito de crer naquilo que a consciência auto determina, a exercer os preceitos dessa auto determinação e externá-la por meio de cultos religiosos e suas liturgias, da literatura, da musica ou da escolha de tratamentos médicos.
Em relação a esse último aspecto o desenvolvimento desta atividade científica trará a lume algumas respostas fundamentais, já que a proposição é parte da problematização.

 
3 A EXPRESSÃO DA LIBERDADE RELIGIOSA MANIFESTADA NOS MUITOS CONCEITOS DOUTRINAIS DAS TESTEMUNHAS DE JEOVÁ
3.1 A SAGRAÇÃO DO SANGUE PARA O UNIVERSO DOS ADEPTOS DAS PRÁTICAS DOUTRINAIS DAS TESTEMUNHAS DE JEOVÁ
Segundo o livro Raciocínios a base das escrituras (ASSOCIAÇÃO TORRE DE VIGIA 1989, p.384-393), publicado pelas Testemunhas de Jeová, a história moderna desse grupo religioso iniciou-se com a formação de um grupo de estudo bíblico em Allegheny, Pensilvânia, EUA, nos primórdios da década de 1870. No começo, eram conhecidas apenas como Estudantes da Bíblia, mas, em 1931, adotaram o nome bíblico de Testemunhas de Jeová. Suas crenças e seus métodos não são novos, são antes uma restauração do cristianismo do primeiro século.
A revista A Sentinela de 15 de abril de 1975 páginas 245 a 247 declara o seguinte a respeito das Testemunhas de Jeová:
(...) reconhecem que o cristianismo não e apenas uma crença — mas que é um modo de vida. Na realidade, nos tempos apostólicos, o cristianismo foi chamado de “O Caminho”. (...) Todos os princípios excelentes da Bíblia precisam ser aplicados na vida do cristão, no lar, no negócio — em todas as ocasiões. (...) Em suma, as Testemunhas de Jeová são diferentes em que se apegam de perto aos ensinos da Bíblia. Rejeitam a filosofia mundana e as tradições da cristandade. (ASSOCIAÇÃO TORRE DE VIGIA 1975, p.245-247)
Os que professam a religião das Testemunhas de Jeová praticam suas crenças na vida diária, obedecer às leis Deus passa a fazer parte de sua rotina, daí considerarem sua religião um “modo de vida”. Aqueles que se desviam deste caminho, insistindo em violar as leis justas de Deus por imoralidade, furto, calúnias, ensino de doutrinas falsas, causar divisões ou seitas, são expulsos de suas congregações.
Curioso ressaltar que as Testemunhas de Jeová não professam a doutrina da imortalidade da alma, do Inferno de fogo, bem como a existência de uma Trindade, dentre os principais ensinamentos doutrinais deste grupo religioso destaca-se a crença na santidade do sangue, para elas introduzir sangue no corpo pela boca ou pelas veias viola as leis de Deus.
Tal doutrina se baseia em passagens bíblicas tais como a registrada no livro de Gênesis, capitulo 9 versículos 3 e 4 (BÍBLIA SAGRADA, 1984 p. 118) onde após o dilúvio global, quando Deus permitiu aos humanos comer carne deu também a seguinte ordem a Noé  sua família: “Todo animal movente que está vivo pode servir-vos de alimento. Como no caso da vegetação verde, deveras vos dou tudo.  Somente a carne com a sua alma — seu sangue — não deveis comer”. 
A lei dada ao povo Hebreu exprimia um mandamento similar. Em Levítico capítulo 17 versículo 14 (BÍBLIA SAGRADA, 1984 p. 118) está registrado a seguinte passagem:
Pois a alma de todo tipo de carne é seu sangue pela alma nele. Por conseguinte, eu disse aos filhos de Israel: “Não deveis comer o sangue de qualquer tipo de carne, porque a alma de todo tipo de carne é seu sangue. Quem o comer será decepado [da vida].”
Segundo crêem as Testemunhas de Jeová, conforme descrito em um folheto intitulado “As Testemunhas de Jeová e a Questão do Sangue” (ASSOCIAÇÃO TORRE DE VIGIA, 1977, p. 6).
 (...) este regulamento divino não era simples restrição dietética, tal como o conselho dum médico a um paciente para que evite o sal ou as gorduras. O “Criador” vinculou ao sangue um princípio moral de suma importância. Ao derramar todo o sangue que pudesse ser razoavelmente escoado, Noé e seus descendentes manifestariam seu respeito pelo fato de que a vida procedia do Criador e dependia dele.
Sobre a aplicação desta lei divina se estender ao uso do sangue humano o folheto citado (ASSOCIAÇÃO TORRE DE VIGIA, 1977, p. 9) prossegue:
Será que o mesmo princípio se aplicaria ao sangue humano? Sim, com ainda maior força. Pois Deus prosseguiu dizendo a Noé: “Além disso, exigirei de volta vosso sangue das vossas almas (...) Quem derramar o sangue do homem, pelo homem será derramado o seu próprio sangue, pois à imagem de Deus fez ele o homem.” (...) se o sangue animal  tinha significado sagrado para Deus, obviamente o sangue humano tinha um significado sagrado de ainda maior valor.
Ainda explicando sobre a possibilidade de esta lei se aplicar ao sangue de humanos o folheto citado (ASSOCIAÇÃO TORRE DE VIGIA, 1977, p. 10) afirma que é perfeitamente compreensível visto que a lei de Deus proibia o consumo de “sangue de qualquer tipo de carne”.
Alguns questionam a validade e aplicabilidade desta lei em nossos dias, até mesmo pelo fato de que existem instituições religiosas que apóiam as transfusões e incentivam a doação de sangue, para as Testemunhas de Jeová, porém existe base para se crer que ela continua em vigor conforme descreve o folheto As Testemunhas de Jeová e a Questão do Sangue (ASSOCIAÇÃO TORRE DE VIGIA, 1977, p. 7):
Muitos peritos bíblicos reconhecem que Deus delineou aqui um regulamento que se aplicava, não apenas a Noé e sua família achegada, mas a toda a humanidade desde esse tempo — em realidade, todos os que vivem desde o Dilúvio pertencem à família de Noé. Por exemplo, João Calvino, teólogo e reformador, reconheceu quanto à proibição do sangue que “esta lei foi dada ao mundo inteiro, logo depois do dilúvio”. E Gerhard Von Rad, professor da Universidade de Heidelberg, refere-se a Gênesis 9:3, 4, como “um estatuto para toda a humanidade”, porque toda a humanidade descende de Noé.
Sim, para as Testemunhas de Jeová toda humanidade descende do patriarca Noé e, portanto, está sujeita a lei que lhe fora dada. Existe, porém, ainda uma questão a ser respondida. A morte sacrificial de Cristo não teria posto fim a obrigatoriedade de observância às leis do Velho Testamento?   
De acordo com a crença das Testemunhas de Jeová após a morte sacrificial de Jesus Cristo os adoradores verdadeiros não mais estavam obrigados a cumprir a lei mosaica. Assim as restrições dietéticas da Lei dada ao povo Judeu, tais como as que proibiam comer gordura ou a carne de certos animais, não eram mais obrigatórias, entretanto, segundo descrito no folheto As Testemunhas de Jeová e a Questão do Sangue (ASSOCIAÇÃO TORRE DE VIGIA, 1977, p.11) em 49 da era cristã, surgiu uma controvérsia entre os cristãos do primeiro século quanto a se os não-judeus que se convertessem ao cristianismo teriam ou não que ser circuncidados, tal polemica foi resolvida durante uma conferência dos apóstolos e anciãos de Jerusalém, que serviam como o corpo central de anciãos para todos os cristãos. Este concílio apostólico decidiu que os não-judeus que aceitaram o cristianismo não tinham de ser circuncidados.
Ainda durante a discussão, Tiago, meio-irmão de Jesus, trouxe à atenção do concílio outras coisas essenciais que ele julgou importante que incluíssem em sua decisão em sua declaração ele se referiu aos escritos de Moisés, que revelavam que, mesmo antes de ser dada a Lei, Deus desaprovava as relações sexuais imorais, a idolatria e o comer sangue, o que incluiria comer a carne, que continha sangue, de animais estrangulados. Assim a decisão proferida pelo concilio nesta convenção foi enviada por carta a todas as igrejas cristãs do primeiro século. O seu conteúdo foi registrado no livro bíblico de Atos no capitulo 15, versículos 28 e 29(BÍBLIA SAGRADA, 1984, p. 1988).
“Pareceu bem ao espírito santo e a nós mesmos não vos acrescentar nenhum fardo adicional, exceto as seguintes coisas necessárias: de vos absterdes de coisas sacrificadas a ídolos, e de sangue, e de coisas estranguladas, e de fornicação. Se vos guardardes cuidadosamente destas coisas, prosperareis.”
Que é a base principal da crença das Testemunhas de Jeová na atualidade, para elas tal questão não fosse tão importante para Deus, não estaria repetida tantas vezes nas Escrituras Sagradas. Conforme declaram não se trata de opinião pessoal, pois, muito embora os cristãos não estivessem sob a lei mosaica era necessário abster-se de sangue, e tal decisão fora tomada em harmonia com o Espírito Santo de Deus. Assim estão resolutas de que (ASSOCIAÇÃO TORRE DE VIGIA, 1977, p.17):
Sob a orientação do espírito santo, o concílio apostólico decretou que os cristãos que desejam ter a aprovação de Deus têm de ‘abster-se do sangue’, como Deus exige desde os dias de Noé. Este conceito bíblico era aceito e seguido pelos cristãos primitivos, mesmo quando fazê-lo lhes custava a vida. E, através dos séculos, tal requisito tem sido reconhecido como “necessário” para os cristãos. Assim, a determinação das Testemunhas de Jeová de abster-se do sangue se baseia na Palavra de Deus, a Bíblia, e é apoiada pelos muitos precedentes na história do cristianismo.
As Testemunhas de Jeová salientam que as pessoas que reconhecem sua dependência do “Criador” e “Dador da Vida” devem estar determinadas a obedecer às suas ordens. Esta é a posição firme que assume este grupo religioso, que hoje ascende a 7.124.443 de seguidores em 236 países, conforme Anuário (ASSOCIAÇÃO TORRE DE VIGIA, 2009 p. 102). Estão plenamente convictas de que é correto obedecer à lei de Deus que ordena a abstenção do sangue. De acordo com suas próprias convicções sustentam que não seguem um capricho pessoal ou algum conceito fanático e sem base e que por obediência à autoridade suprema do universo, Jeová é que se recusam a introduzir sangue em seus sistemas, quer seja por meio de ingestão ou transfusão.
Portanto a questão do sangue para as Testemunhas de Jeová encerra os princípios mais fundamentais sobre os quais elas, como cristãos, baseiam sua vida, segundo afirmam o que está em jogo é sua relação com seu Criador e Deus e crêem de todo o coração que macular esta relação é pior que a própria morte. Foi assim que se deu no caso de Adrian, um jovem Testemunha de Jeová, de 14 anos do Canadá, que teve sua história publicada na Revista Despertai! De 22 de maio de 1994, diagnosticado com leucemia ele recusou ser tratado com sangue, defendo sua posição escreveu o seguinte ao juiz da Suprema Corte de Terra Nova, Canadá:
A pessoa medita muito sobre as coisas quando está doente, e quando está com câncer, a pessoa sabe que pode morrer e pensa nisso. Eu não concordo em receber sangue, ou em permitir que seja usado; de modo algum. Sei que posso morrer se não for usado sangue. Mas minha decisão é esta. Ninguém me forçou a isso. Penso que se me for dado sangue isso seria como que me violentar, molestar meu corpo. Rejeito meu corpo nessas condições. Não posso pagar esse preço. Não desejo tratamento algum que use sangue, nem mesmo que inclua essa possibilidade. Resistirei ao uso de sangue. Por favor, respeitem a mim e a minha vontade. (DESPERTAI!, p. 7)
As Testemunhas de Jeová estão convictas de que a obediência às orientações de seu “Criador” é para o seu bem duradouro. Têm plena confiança nas palavras de Jesus no evangelho de João capítulo 11 versículo 25 “Eu sou a ressurreição e a vida. Quem exercer fé em mim, ainda que morra, passará a viver.”
Por isso, mesmo que o custo imediato de sua decisão seja a perda da vida atual, tais cristãos estão resolvidos a manterem a sua integridade e obediência naquilo que acreditam ser um “decreto divino”, e que faz parte de suas doutrinas e do culto religioso que professam.
3.2 TRATAMENTOS ALTERNATIVOS A TRANSFUSÃO DE SANGUE
O fato de as Testemunhas de Jeová manter sua posição firme contra o uso do sangue não significa que são fanáticas ou suicidas, pelo contrário, respeitam a vida como sendo um bem supremo, um presente dado pelo “Criador” e por isso procuram preservar ao máximo esta dádiva que receberam. Assim diante dos avanços que a tecnologia coloca a sua disposição este grupo religioso se engajou na luta junto a médicos e cientistas na busca por medicamentos e técnicas que pudessem substituir o uso medicinal do sangue, afim de que pudessem encontrar uma terapia que se harmonizasse com sua doutrina, de sagração do sangue.
Seu objetivo é permitir a manutenção da vida sem violar a santidade do sangue além de proteger-se dos riscos inerentes a transfusões de sangue. Com bom alvitre a comunidade médica tem colaborado com as Testemunhas de Jeová, e se empenhado em encontrar substitutos para o sangue.
Acredita-se que o sangue não deve ser a primeira alternativa utilizada pelo médico para repor a perda sanguínea, tendo em vista os fatores de risco envolvidos em uma transfusão. Segundo a MSD Brasil (acesso em 04-09-2009):
As reações mais comuns são a febre e as reações alérgicas (hipersensibilidade), que ocorrem em aproximadamente 1 a 2% das transfusões. Os sintomas incluem o prurido, a erupção cutânea, o edema, a tontura, a febre e a cefaléia. São sintomas menos comuns: dificuldades respiratórias, chiados e espasmos musculares.
As reações mais graves são as imediatas imunológicas do tipo hemolíticas, cujos sinais são inquietação, tremores, febre, vômitos, salivação, taquipnéia, taquicardia e convulsões.
Apesar da tipagem cuidadosa e do teste de compatibilidade, ainda existem incompatibilidades que acarretam a destruição dos eritrócitos transfundidos logo após a realização do procedimento (reação hemolítica). Geralmente, a reação inicia como um mal-estar generalizado ou uma ansiedade durante ou imediatamente após a transfusão. Algumas vezes, o indivíduo pode apresentar dificuldade respiratória, pressão torácica, rubor e dorsalgia intensa. (MSD BRASIL, acesso em 04-09-2009)
Pode ocorrer o fenômeno denominado doença do enxerto-versus-hospedeiro. Nessa doença, os tecidos do receptor (hospedeiro) são atacados pelos leucócitos do doador (enxerto). Os sintomas incluem a febre, erupção cutânea, a hipotensão arterial, a destruição de tecidos e o choque. (MSD BRASIL, acesso em 04-09-2009)
Estes numerosos tipos de reações transfusionais são deveras graves, pois podem provocar a morte.
Além das possíveis reações infecciosas pesquisas recentes mostram que o perigo maior encontra-se ma própria transfusão de sangue uma reportagem publicada em 24 de abril de 2008 no Diário da Saúde com o tema “Médicos questionam benefícios da transfusão de sangue” (acesso em 05-11-2009), destacou que nos últimos 10 anos, uma série de estudos descobriu que, muito longe de salvar vidas, as transfusões de sangue podem efetivamente colocar em risco a vida dos pacientes. Agora, um grupo de cirurgiões e anestesistas está questionando se o procedimento deve ser realmente adotado livremente como acontece hoje. O Dr. James Isbister, do Royal North Shore Hospital, na Austrália lembrou que "Normalmente, quando há uma incerteza clínica sobre um tratamento, você não o administra, mas nós continuamos aplicando a transfusão”. A reportagem enfatiza que um estudo avaliou uma série de outras pesquisas médicas já publicadas, mostrando que o problema não está com o grandemente propalado risco de se contrair uma infecção, ou doenças como a AIDS ou a hepatite - o maior problema está no próprio sangue, as pesquisas apontam que os fatores de risco estão relacionados a alterações químicas no sangue já envelhecido, seu impacto sobre o sistema imunológico e a capacidade do sangue em transportar oxigênio.
Várias das pesquisas revisadas apontam que as transfusões de sangue, particularmente as que contêm glóbulos vermelhos, estão ligadas a altas taxas de mortalidade em pacientes que tiveram um ataque cardíaco, que passaram por cirurgias cardíacas ou que estão em estado crítico.
Segundo conclusão obtida por meio do novo estudo coordenado por médicos ingleses, não há nenhuma pesquisa que demonstre que a transfusão de sangue seja benéfica.
A reportagem assinala a existência de riscos maiores que o de infecções:
Um estudo mais recente descobriu que, em pacientes que sofreram ataques cardíacos, apresentando hematócritos acima de 25%, uma transfusão de sangue está associada com um risco de morte três vezes maior ou com um segundo ataque cardíaco num intervalo de 30 dias. Para quase 9.000 pacientes que sofreram cirurgias cardíacas na Inglaterra entre 1996 e 2003, receber uma transfusão de glóbulos vermelhos está associado com um risco três vezes maior de morrer dentro de um ano, e um risco quase seis vezes maior de morrer em até 30 dias depois da cirurgia. As transfusões de sangue também estão associadas a mais infecções e altas taxas de incidência de derrames cerebrais, ataques cardíacos e falhas nos rins - complicações normalmente associadas a uma falta de oxigênio nos tecidos (DIÁRIO DA SAÚDE, 2009 P. 1).
De fato a revista Como pode o Sangue Salvar a Sua Vida (ASSOCIAÇÃO TORRE DE VIGIA, 1989, p. 8), publicada pelas Testemunhas de Jeová, divulgou que um estudo realizado na França concluiu o seguinte:
Uma avaliação franca dos fatos prova que a transfusão de sangue deve honestamente ser considerada como um processo que envolve considerável perigo e até mesmo como sendo potencialmente letal. O Dr. C. Ropartz, Diretor do Departamento Central de Transfusões em Ruão, França, comentou que “um frasco de sangue é uma bomba”. Visto que os resultados perigosos talvez não surjam senão depois de certo tempo, acrescentou ele, “ademais, pode também ser uma bomba-relógio para o paciente”.
Além disso, os testes realizados nos sangues doados por voluntários não são suficientes para detectar todas as possíveis contaminações conforme afirma certo dirigente da Cruz Vermelha Americana:
O mais preocupante é que os testes realizados nos bancos de sangue não geram a segurança que muitos pacientes imaginam ter. (...) Simplesmente não podemos continuar a adicionar teste após teste para cada agente infeccioso que poderia ser disseminado. (ASSOCIAÇÃO TORRE DE VIGIA 1990 p.10)
Com efeito, a posição firme adotada pelas Testemunhas de Jeová resultou no surgimento de diversos tratamentos alternativos a transfusão de sangue, o que tem beneficiado não só a elas como também pessoas da população em geral que desejam um tratamento médico seguro e eficaz.
Muitos médicos reconhecem que a recusa das Testemunhas de Jeová contribuiu significativamente para este avanço e aceitam de bom grado realizar cirurgias complexas sem uso de sangue. Ao contrário, porém, a intolerância religiosa de alguns e o preconceito de outros faz com que vez por outra surja na mídia sensacionalista reportagens de cunho depreciativo quanto à posição das Testemunhas de Jeová, fazendo crer a população leiga que a transfusão de sangue é o único meio hábil, seguro e eficaz, para salvar a vida em caso de perda significativa de sangue. Contudo não é o que se depreende do estudo realizado pelos que desejam esclarecimento acerca da polêmica que tal questão encerra.   
A transferência de sangue ou de um de seus componentes de um indivíduo a outro são realizadas para aumentar a capacidade do sangue de transportar oxigênio, para restaurar o volume sangüíneo do organismo, para melhorar a imunidade ou para corrigir distúrbios da coagulação. Dessa forma empreendeu-se uma busca por componentes capazes de realizar tais funções vitais de modo eficaz, bem como de técnicas que impedissem a perda significativa de sangue durante cirurgias de alto risco.  
Sobre tais alternativas uma série de vídeos intitulada Alternativas a Transfusão de sangue Série de Documentários, feito pelas Testemunhas de Jeová, aborda várias medicações, tratamentos e técnicas cirúrgicas capazes de realizar tais intentos, algumas simples e de baixo custo. Dentre as alternativas mencionadas destaca-se o uso da Eritropoetina Humana Recombinante, que é uma forma biossintética de um hormônio humano natural que estimula a medula óssea a produzir hemácias. A Eritropoetina pode ser administrada antes, durante ou depois do tratamento ou cirurgia, bem como para pacientes com câncer que recebem quimioterapia ou para tratar pacientes anêmicos portadores de insuficiência renal crônica. Para dar suporte a produção de hemácias produzidas pela Eritropoetina é feita a aplicação de ferro e hematínicos.(VÍDEO, ALTERNATIVAS A TRANSFUSÃO DE SANGUE, 2004)
Para estimular a produção de plaquetas, essenciais ao processo de coagulação do sangue, utiliza-se a Interleucina-11 Recombinante, uma forma geneticamente produzida, de um hormônio humano. O Ácido Aminocapróico e Tranexâmico são muito úteis para estimular a coagulação inibindo ou cessando a decomposição dos coágulos sangüíneos, ou fibrinólise, tais compostos se mostraram eficazes em casos de hemorragia sendo amplamente utilizados em cirurgias cardíacas, oncologia, obstetrícia, ginecologia, transplantes, cirurgias ortopédicas, traumas e em distúrbios hematológicos. .(VÍDEO, ALTERNATIVAS A TRANSFUSÃO DE SANGUE, 2004)
Para diminuir a perda de sangue, adesivos teciduais, tais como a cola de fibrina, são utilizados para selar superfícies das feridas cirúrgicas de modo a reduzir o sangramento pós-operatório.
Quando a perda de plasma é excessiva são utilizados os chamados expansores do volume do plasma, que são os cristalóides, dentre os quais menciona-se a solução salina, lactato de ringer e a solução salina hipertônica, esses fluidos intravenosos compostos de água, com vários sais e açucares têm a função de manter o volume circulatório do sangue no corpo. De forma similar, os colóides, que são fluidos compostos de água misturada com partículas bem diminutas de proteínas, mantêm os níveis de proteína sanguínea, estabilizando o equilíbrio dos fluidos e o volume circulatório do sangue no corpo. Os colóides mais utilizados são o Pentastarch, Hetastarch (Hidroxietila de amido) e o Dextran. .(VÍDEO, ALTERNATIVAS A TRANSFUSÃO DE SANGUE, 2004)
Sobre técnicas utilizadas durante as cirurgias destaca-se o uso de instrumentos cirúrgicos hemostáticos eficazes tanto em cirurgias convencionais a céu aberto como na cirurgia minimamente invasiva. Quando utilizados com habilidade reduzem o sangramento, facilitam o manejo dos tecidos, e permitem que haja maior visibilidade, graças a um campo cirúrgico mais seco, o que pode abreviar o tempo cirúrgico bem como reduzir a exposição da equipe médica ao sangue. Dentre os referidos instrumentos podemos destacar o eletrocautério, lasers e o coagulador com raio de argônio. Este último causa um trauma mínimo aos tecidos, coagula os vasos grandes e reduz o risco de hemorragia pós-operatória. O fluxo de argônio, por ser um gás incolor, inodoro e inativo, facilita a coagulação controlada por uma área mais ampla, acentua a visibilidade no campo cirúrgico, diminui o manejo de tecidos bem como a exposição do médico ao sangue através de rupturas das luvas ou furo de agulhas. (VÍDEO, ALTERNATIVAS A TRANSFUSÃO DE SANGUE, 2004)
O vídeo mostra que existem ainda disponível, para pacientes com múltiplos ferimentos, os equipamentos de Recuperação intra-operatória de sangue. Este equipamento é capaz de recuperar parte do sangue derramado lavando-o ou filtrando-o sendo posteriormente reinfundido no paciente.
Explicando o funcionamento de tal equipamento o vídeo Estratégias Alternativas a Transfusão, feito pelas Testemunhas de Jeová menciona que o sangue pode ser desviado do paciente para um aparelho de hemodiálise ou para uma bomba coração-pulmão. O sangue flui para fora através de um tubo até o órgão artificial que o bombeia e filtra (ou oxigena) e daí volta para o sistema circulatório do paciente. Há também instrumentos para a Recuperação pós-operatória do sangue (tubo de drenagem, no qual o sangue derramado é processado e devolvido ao paciente). Este processo de Hemodiluição, quando é usado um circuito fechado e não se faz coleta de sangue pré – operatório é aceitável para muitas Testemunhas de Jeová. (VÍDEO, ALTERNATIVAS A TRANSFUSÃO DE SANGUE, 2004)
Existem ainda outros meios aptos a permitir que se descarte totalmente o uso de sangue em uma cirurgia como, por exemplo, o uso do aparelho coração-pulmão, a técnica de resfriar o paciente para reduzir a necessidade de oxigênio durante a cirurgia, a anestesia hipotensiva, a terapia para melhorar a coagulação sanguínea e a desmopressina, usada para abreviar o tempo de sangramento, todas perfeitamente demonstradas na série de vídeos mencionada. (VÍDEO, ALTERNATIVAS A TRANSFUSÃO DE SANGUE, 2004)
É inegável o fato de que há uma enorme variedade de tratamentos e métodos isentos de sangue que podem e devem ser utilizados para garantir às Testemunhas de Jeová o livre exercício de sua liberdade de crença e culto religioso, não se justifica, portanto, a decisão precipitada que obriga a transfusão de sangue em paciente Testemunha de Jeová, conforme exposição brilhante no voto vencido do Desembargador Marcos Antônio Ibrahim no Agravo de Instrumento n.º 2004.002.13229, julgado em 05.10.2004 pela 18ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do RJ:
O direito à vida não se resume ao viver (...) O Direito à vida diz respeito ao modo de viver, a dignidade do viver. Só mesmo a prepotência dos médicos e a insensibilidade dos juristas pode desprezar a vontade de um ser humano dirigida a seu próprio corpo. Sem considerar os aspectos morais, religiosos, psicológicos e, especialmente, filosóficos que tão grave questão encerra. A liberdade de alguém admitir, ou não, receber sangue, um tecido vivo, de outra (e desconhecida) pessoa.
Ora, se a religião é considerada pelas Testemunhas de Jeová como um modo de vida elas se reservam ao direito de exercer a liberdade de escolher o tratamento de saúde que julgam ser o mais adequado as suas crenças e não permitem que outros, quer sejam médicos ou juristas, o façam em seu lugar, portanto a decisão que viola tal escolha compreende uma gravíssima violação do direito a liberdade assegurada pela Constituição de 1988 que garante ao individuo o pleno domínio de si mesmo e dos atos dirigidos a seu próprio corpo.
De fato conforme salienta Paulo Bonavides (2008, p. 653,654):
Os direitos da primeira geração ou direitos da liberdade, têm por titular o individuo, são oponíveis ao Estado, traduzem-se como faculdades ou atributos da pessoa e ostentam uma subjetividade que é seu traço mais característico; enfim, são os direitos de resistência ou de oposição perante o Estado. (...) São por igual direitos que valorizam primeiro o homem singular, o homem das liberdades abstratas, homem da sociedade mecanicista que compõe a chamada sociedade civil, da linguagem jurídica mais individual. 
Para José Afonso da Silva (2001, p. 236), “numa sociedade onde há leis, a liberdade não pode consistir senão em poder fazer o que se deve querer, e a não ser constrangido a fazer o que não se deve querer.” ele afirma que a definição de liberdade que parece mais aceitável é a que consta da Declaração de 1978, a saber, que “a liberdade consiste em poder fazer tudo o que não prejudique a outrem”.
E mais ainda (SILVA, 2001, p. 236):
O conceito de liberdade humana deve ser expresso no sentido de um poder de atuação do homem em busca de sua realização pessoal, de sua felicidade. (...) “a liberdade é um poder de autodeterminação, em virtude do qual o homem escolhe por si mesmo seu comportamento pessoal”. (...) liberdade consiste na possibilidade de coordenação consciente dos meios necessários à realização da felicidade pessoal.
Pode-se, portanto afirmar que a atitude das Testemunhas de Jeová referente à questão do sangue é legitima diante do conceito filosófico de liberdade, pois a sua autodeterminação envolve apenas sua vida privada não violando direito alheio, tal recusa visa única e exclusivamente manter uma boa relação pessoal com seu Deus, para elas esta é a realização da verdadeira felicidade. Aliás, a respeito do direito a privacidade, intrinsecamente ligado ao conceito de liberdade, Manoel Gonçalves Ferreira Filho (1994, p. 6) aduz o seguinte:
O direito à privacidade é dos que reclamam a não-interferência, a não-ingerência, a não-intromissão, seja do Estado, seja de todo o grupo social, seja de qualquer outro indivíduo. Nisto, ele coincide com as liberdades públicas clássicas que impõem um não fazer, estabelecendo uma fronteira em benefício do titular que não pode ser violada por quem quer que seja. Reflete ela a dignidade humana cuja primeira e principal expressão é a liberdade. Dela decorre que cada ser humano tem o direito de conduzir a própria vida (...) desde que não fira o direito de outrem.
O fato é que a decisão referente à escolha de determinado tratamento médico é uma faculdade que diz respeito privativamente ao paciente de modo que a transfusão de sangue realizada a força, com respaldo em liminar obtida em atendimento a pedido do médico ou do hospital agride a intimidade, a liberdade, a vida privada e é em si mesma uma afronta a dignidade da pessoa humana. O que encontra reforço nas palavras do renomado jurista Celso Ribeiro Bastos (2000, p. 19):
Quando o Estado determina a realização de transfusão de sangue – ocorrência fenomênica que não pode ser revertida – fica claro que violenta a vida privada e a intimidade das pessoas no plano da liberdade individual. Mascara-se, contudo, a intervenção indevida, com o manto da atividade terapêutica benéfica ao cidadão atingido pela decisão. Paradoxalmente, há também o recurso argumentativo aos ‘motivos humanitários’ da prática, quando na realidade mutila-se a liberdade individual de cada ser, sob múltiplos aspectos.
Portanto não se justifica a transfusão de sangue forçada em Testemunhas de Jeová pelo fato de existirem, como já salientado, dezenas de tratamentos alternativos ao uso do sangue, bem como técnicas cirúrgicas que auxiliam na redução da perda do plasma durante cirurgias complexas.
É inconcebível que diante dos avanços no campo da medicina, a afirmativa de que o sangue é a única e última opção disponível e eficaz para salvar a vida do paciente que sofreu hemorragia, seja provada verossímil.
Ademais, tal interferência sendo irreversível é uma afronta ao direito do paciente de auto determinar-se. Além de uma ignominiosa transgressão a dignidade da pessoa humana, visto que para as Testemunhas de Jeová, sua dignidade se resume em manter a fidelidade e a obediência às leis e princípios de moral estabelecidas na bíblia pelo “Criador”, dentre as quais destacam a santidade do sangue.
A veracidade desta afirmativa encontra-se nas palavras de Adrian, citado anteriormente, “Penso que se me for dado sangue isso seria como que me violentar, molestar meu corpo. Rejeito meu corpo nessas condições. Não posso pagar esse preço. Por favor, respeitem a mim e a minha vontade.”
Sim, no universo de um adepto das práticas doutrinais das Testemunhas de Jeová receber sangue por meio de uma transfusão forçada seria algo mais terrível que a própria morte, apenas para dimensionar o dano subjetivo que tal procedimento acarretaria pode-se compará-lo ao sofrimento de uma virgem vitima de estupro, ou de um jovem varão que teve a virilidade maculada pela prática de atentado violento ao pudor ou ao sofrimento de pais que tiveram filhos (algumas vitimas com apenas meses de idade) vitimas da pedofilia. Resultaria em uma vida sem dignidade pelo resto de seus dias.

 
4 NEOCONSTITUCIONALISMO – UMA PREMISSA ATUAL QUE DEVE SER SENTIDA PELO APLICADOR DO DIREITO DIANTE DO CASO CONCRETO
4.1 OS NOVOS RUMOS DA HERMENÊUTICA JURÍDICA E A APLICAÇÃO DO DIREITO NA MODERNIDADE
A fim de relacionar Neoconstitucionalismo com o caso das Testemunhas de Jeová urge definir o termo de modo a permitir ao leitor uma compreensão do que se pretende. Assim Luis Roberto Barroso no prefácio da obra de Gustavo Binenbojm, traz a lume um conceito de Neoconstitucionalismo:
O fenômeno do Neoconstitucionalismo tem como marco filosófico o pós-positivismo, como marco histórico, a formação do Estado constitucional de direito, após a 2ª Guerra Mundial, onde, no caso brasileiro, ocorreu com a redemocratização institucionalizada pela Constituição de 1988 e, como marco teórico, o conjunto de novas percepções e de novas práticas, que incluem o reconhecimento de força normativa à Constituição, a expansão da jurisdição constitucional e o desenvolvimento de uma nova dogmática da interpretação constitucional, envolvendo novas categorias, como os princípios, as colisões de direitos fundamentais, a ponderação e a argumentação.
Segundo Sarmento (2002, p. 69) o Neoconstitucionalismo busca equilibrar as relações em uma sociedade pluralista, em que não raro observa-se o choque entre as concepções individualista e coletiva.
Trata-se de uma era em que se vê prevalecer o “personalismo”, doutrina filosófica desenvolvida pelo francês Emmanuel Mournier a partir da década de 1930, pela qual se busca uma solução de compromisso entre as concepções individualista e coletiva, principalmente no contexto contemporâneo, onde não mais se concebe o homem como um ser sem raízes que cuida de forma egoística de seus interesses em uma sociedade caracterizada pela individualidade, como também não mais concebe a visão oposta de sua trans-personalidade nos moldes de uma visão organicista, que vê o homem como uma parte de um todo social, cujos interesses individuais devem ser sacrificados em beneficio da coletividade.     
De modo que se pode afirmar que o Neoconstitucionalismo está relacionado à reforma por que passou o constitucionalismo na segunda metade do século XX, que elevou o status das constituições dos Estados, dando-lhes força normativa e garantindo a realização dos direitos humanos por meio da elevação dos princípios e dos direitos e garantias fundamentais a órbita constitucional. E que de acordo com a definição proposta por Barroso possui três marcos fundamentais um filosófico sendo este o pós-positivismo, um histórico que seria a formação do estado constitucional de direito, que no Brasil se inicia com a promulgação da Constituição Federal de 1988 e por último um marco teórico que seria um conjunto de novas práticas incluindo o desenvolvimento de uma nova dogmática da interpretação constitucional, que abarcam novas categorias, como os princípios, as colisões de direitos fundamentais, a ponderação e a argumentação. Tais construções inovadoras marcam a reconstitucionalização do Brasil que tem como ponto de partida a Constituição Cidadã de 1988. 
No ambiente que se seguiu ao fim da Segunda Guerra Mundial o direito como se apresentava no positivismo jurídico que, segundo Barroso, empenhava-se no desenvolvimento de idéias e de conceitos dogmáticos em busca de uma cientificidade anunciada que reduzia o direito ao conjunto de normas em vigor considerando-o um sistema perfeito (BARROSO, 2004 p. 324), já não servia aos interesses da coletividade tendo em vista que eivados de legalidade surgiram movimentos Totalitários, tais como o Nazismo (na Alemanha) e o Fascismo (na Itália), que promoveram a barbárie e uma política de intolerância por meio de leis perfeitamente válidas. Por isso (BARROSO, 2004, p. 325):
(...) o fracasso político do positivismo abriu caminho para um conjunto amplo e ainda inacabado de reflexões acerca do direito, sua função social e sua interpretação. O pós-positivismo é a designação provisória e genérica de um ideário difuso, no qual se incluem a definição das relações entre valores, principio e regras, aspectos da chamada nova hermenêutica e a teoria dos direitos fundamentais.     
Dessa forma o Neoconstitucionalismo procura reaproximar o direito da ética e da moral, dando aos valores, naturalmente arraigados no homem, status normativo, para tanto, (BARROSO, 2004 p. 326):
Para poderem beneficiar-se do amplo instrumental do Direito, migrando da filosofia para o mundo jurídico, esses valores compartilhados por toda a comunidade, em dado momento e lugar, materializam-se em princípios, que passam a estar abrigados na Constituição, explicita ou implicitamente. Outros, conquanto clássicos, sofreram releituras e revelaram novas sutilezas, como a separação dos Poderes e o Estado democrático de direito. Houve, ainda, princípios que se incorporaram mais recentemente ou, ao menos, passaram a ter uma nova dimensão, como o da dignidade da pessoa humana, da razoabilidade, e da reserva de justiça.
Assim não mais é possível vislumbrar o Direito como um conjunto de leis genérica e abstrata, como no positivismo clássico, tendo em vista que a coletividade é formada por pessoas e classes sociais diferentes, com necessidades e desejos diferentes, de modo que é necessário resgatar a substância da lei e encontrar os instrumentos aptos a conferir limitação e conformação aos princípios de justiça. Desta feita, ao conferir plena eficácia normativa aos princípios, a lei perde seu posto de supremacia, e agora se encontra subordinada a Constituição, estas deixaram de ser flexíveis e tornaram-se rígidas, no sentido de escritas e não passíveis de modificação pela legislação ordinária. 
O fato de a lei encontrar limites nos princípios constitucionais significa que ela não possui apenas legitimação formal, antes de tudo encontra - se vinculada aos direitos contidos na constituição. Devendo estar de acordo com os direitos fundamentais. Essa transformação deixa a cargo do jurista a tarefa de compreender a lei à luz dos princípios constitucionais e dos direitos fundamentais. (MARINONI, 2008, p. 43 - 48)
Cumpre salientar, nesta nova construção jurídica, a diferença qualitativa entre regra e princípio. Para Barroso (2004, p. 328), que abstrai sua formulação dos conceitos de Ronald Dworkin e Roberto Alexy, regras são proposições normativas aplicáveis sob forma de tudo ou nada, assim se os fatos previstos na norma ocorreram, ela deve incidir de modo direito e automático, produzindo seus efeitos. Dessa forma uma regra só deixará de ser aplicada na hipótese de fato que observa se for invalida, se houver outra mais especifica ou se não estiver em vigor.  A regra se aplica mediante subsunção. Já os princípios são dotados de uma carga valorativa maior, um fundamento ético, uma decisão política relevante, e indicam determinada direção a seguir. E como não poderia deixar de ser, existem princípios que abrigam decisões, valores ou fundamentos diversos, por vezes contrapostos. É a chamada colisão de princípios, e sua incidência não pode ser posta em termos de tudo ou nada, de validade ou invalidade. Deve-se reconhecer aos princípios uma dimensão de peso ou importância, de modo que diante dos elementos do caso concreto, o interprete deve fazer escolhas fundamentadas, quando se defronte com antagonismos inevitáveis. A aplicação dos princípios se dá mediante ponderação.
Segundo Barroso, (2004, p. 330) ponderação de valores ou ponderação de interesses:
É a técnica pela qual se procura estabelecer o peso relativo de cada um dos princípios contrapostos. Como não existe um critério abstrato que imponha a supremacia de um sobre o outro, deve-se a vista do caso concreto, fazer concessões recíprocas, de modo a produzir um resultado socialmente desejável, sacrificando o mínimo de cada um dos princípios ou direitos fundamentais em oposição. O legislador não pode, arbitrariamente, escolher um dos interesses em jogo e anular o outro, sob pena de violar o texto constitucional. Seus balizamentos devem ser o princípio da razoabilidade e a preservação, tanto quanto possível, do núcleo mínimo do valor que esteja cedendo passo. Não há aqui superioridade formal de nenhum dos princípios em tensão, mas a simples determinação da solução que melhor atende ao ideário constitucional na situação apreciada.    
De acordo com Ana Paula Barcellos, (2002, p. 296) a técnica da ponderação desponta como um método alternativo à subsunção destinada a oferecer logicamente, uma solução adequada a um determinado fato, a partir da incidência de um enunciado normativo (premissa maior), sobre um fato hipoteticamente relevante (premissa menor).
Barroso (2004, p. 358) descreve a ponderação de forma simplificada em três etapas a serem percorridas pelo interprete.
Segundo ele na primeira etapa, o interprete deverá detectar no sistema as normas relevantes para a solução do caso, identificando eventuais conflitos entre elas. Nesta fase os diversos fundamentos normativos são agrupados em função da solução que estejam sugerindo, assim aqueles que estiverem indicando a mesma solução ao caso devem formar um conjunto de argumentos. Na fase seguinte examinam-se os fatos, as circunstâncias concretas do caso e sua interação com os elementos normativos. Na terceira etapa, dedicada à decisão, os diferentes grupos de normas e a repercussão dos fatos do caso concreto estarão sendo examinados de forma conjunta, de modo a apurar os pesos que devem ser atribuídos aos diversos elementos em disputa e, portanto, o grupo de normas que deve preponderar no caso, ademais é preciso verificar com que intensidade esse grupo de normas deve prevalecer em detrimento dos demais, ou seja, sendo possível graduar a intensidade da solução escolhida, cabe ainda decidir qual deve ser o grau de aplicação adequado. Esse processo é realizado por meio do princípio da proporcionalidade. (BARROSO, 2004, p. 358 -360).
Com este método de interpretação objetiva-se a concretização dos direitos e garantias individuais, direitos difusos e coletivos bem como dos direitos humanos universais, e com ele emergem dois princípios fundamentais de interesse ao caso em análise, o principio da razoabilidade e o da dignidade da pessoa humana.
Sobre o principio constitucional da proporcionalidade Paulo Bonavides (2008, p. 399) apresenta as seguintes considerações:
A adoção do principio da proporcionalidade representa talvez a nota mais distintiva do segundo Estado de Direito, o qual com a aplicação desse princípio saiu admiravelmente fortalecido. (...) Contribuiu o princípio para conciliar o direito formal com o direito material em ordem e prover exigências de transformações sociais extremamente velozes, e doutra parte juridicamente incontroláveis caso faltasse a presteza do novo axioma constitucional.
Para Luís Roberto Barroso (BARROSO, 2004 p. 224) o principio da proporcionalidade deve ser visto como um parâmetro de valoração dos atos do poder público para aferir se eles estão informados pelo valor justiça, que é finalidade precípua de todo o ordenamento jurídico.
A proporcionalidade é, segundo Bonavides (2008, p. 397, 398) governada por três subprincípios, o primeiro, adequação, sugere que um princípio deva ser aplicado a uma situação quando for adequado para ela, quando o valor que está sendo discutido ou que se busca promover esteja presente na situação em análise. Do segundo, necessidade se depreende que a medida não há de exceder os limites indispensáveis à conservação do fim legitimo que se pretende atingir, sendo que para ser admissível a medida deve ser necessária. Assim de todas as medidas que servem à obtenção do fim deve-se escolher aquela menos nociva aos interesses do cidadão. E por último, e não menos importante, a proporcionalidade em sentido estrito é o elemento de concretização da proporcionalidade. Aqui se verifica que os ganhos devem sempre superar as perdas, a proporção adequada se torna condição de legalidade, e a escolha recai sobre o meio que, no caso concreto, levarem mais em conta os interesses em jogo. Por exemplo, num conflito entre os princípios A e B vindo o primeiro a prevalecer sobre o segundo entende-se que a realização de A em detrimento de B leva a um resultado melhor do que se ocorresse o inverso.
O princípio da proporcionalidade emerge no direito brasileiro como o fim de equilibrar a colisão entre princípios fundamentais, será utilizado pelo operador do direito na ponderação dos valores que deverão prevalecer no caso concreto, levando a uma harmonização de tais valores com o fim precípuo de atingir o respeito e a proteção da dignidade humana, realizando-se assim a justiça. Como assevera Ingo Wolfgang Sarlet, (2005, p. 32) ele é o "fio condutor de toda a ordem constitucional".
Acerca do principio da dignidade humana Luís Roberto Barroso (2004, p. 334) discorre da seguinte forma:
O principio da dignidade da pessoa humana identifica um espaço de integridade moral a ser assegurado a todas as pessoas por sua só existência no mundo. É um respeito a criação, independente da crença que se professe quanto a sua origem. A dignidade relaciona-se tanto com a liberdade e valores do espírito como com as condições materiais de subsistência. O desrespeito a esse princípio terá sido um dos estigmas do século que se encerrou e a luta por sua afirmação, um símbolo do novo tempo. Ele representa o fim da intolerância, da discriminação, da exclusão social da violência, da incapacidade de aceitar o outro, o diferente, na plenitude de sua liberdade de ser, pensar e criar. 
Ele assevera que (BARROSO, 2004, p 335):
Dignidade da pessoa humana expressa um conjunto de valores civilizatórios incorporados ao patrimônio da humanidade. O conteúdo jurídico do principio vem associado aos direitos fundamentais, envolvendo aspectos dos direitos individuais, políticos e sociais. Seu núcleo material elementar é composto do mínimo existencial, locução que identifica o conjunto de bens e utilidades básicas para a subsistência física e indispensável ao desfrute da própria liberdade. Aquém daquele patamar, ainda quando haja sobrevivência, não há dignidade. 
Ingo Wolfgang Sarlet diz que (SARLET, 2004, p. 47):

(...) a dignidade da pessoa humana é simultaneamente limite e tarefa dos poderes estatais e, no nosso sentir, da comunidade em geral, de todos e de cada um, condição dúplice esta que também aponta para uma paralela e conexa dimensão defensiva e prestacional de dignidade. Como limite, a dignidade implica não apenas que a pessoa não pode ser reduzida à condição de mero objeto da ação própria e de terceiros, mas também o fato de a dignidade gerar direitos fundamentais (negativos) contra atos que a violem ou a exponham a graves ameaças. Como tarefa, da previsão constitucional (explícita ou implícita) da dignidade da pessoa humana, dela decorrem deveres concretos por parte de tutela por parte dos órgãos estatais, no sentido de proteger a dignidade de todos, assegurando-lhe também por meio de medidas positivas (prestações) o devido respeito e promoção.
Sobre o tema, enfatiza Alexandre de Moraes (2002, p. 50) que:
A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos.
 Neste ínterim, diante do cenário mundial, pautado neste novo modelo constitucional, é imprescindível ressaltar as palavras de Daniel Sarmento (2002, p. 69),
O homem pós-moderno, dentro da concepção pós-positivista é um valor em si mesmo superior ao Estado e a qualquer organização social que se integre, embora seja um ser real que concretamente está situado historicamente e geograficamente e que compartilha dos valores e das tradições com aqueles com os quais convive. É o homem que não apenas vive, mas convive. 
Posto isso, no caso especifico das Testemunhas de Jeová e sua crença na santidade do sangue e por conseqüência sua posição contrária à transfusão de sangue é possível, a luz das modernas interpretações constitucionais, a realização de seu direito fundamental de liberdade de culto, consciência e crença religiosa, tendo em vista a existência de alternativas seguras e eficazes ao uso do sangue, preservando-lhes a dignidade da pessoa humana, e realizando-se a justiça no caso concreto, como se pretende demonstrar a seguir.

4.2 A RECUSA NA ACEITAÇÃO DA TRANSFUSÃO DE SANGUE: O CASO DAS TESTEMUNHAS DE JEOVÁ À LUZ DO NEOCONSTITUCIONALISMO
A evolução do pensamento jurídico acerca do valor do indivíduo no seio da sociedade fruto de um estudo amadurecido pelas discussões e reflexões de doutrinadores e estudiosos da área jurídica, especialmente acerca dos direitos humanos fundamentais, que ascendeu no cenário mundial após o fim da Segunda Guerra Mundial, em que se tornou evidente que a vida e a dignidade do ser humano no modelo em que o direito se assentava não possuía a proteção necessária para evitar o arbítrio do Estado, permite que hoje se possa asseverar sem reservas que a decisão judicial que obriga o paciente Testemunha de Jeová a se sujeitar a uma transfusão de sangue contra a sua manifestação de vontade expressa em documento escrito quando ainda consciente configura-se em um abuso de poder do Estado, em grave desrespeito aos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da liberdade de consciência e crença e culto religioso bem como do direito a privacidade. Vale ainda a ressalva de que a decisão quando proferida ao escopo de se proteger o direito a vida carece de fundamento tendo em vista a existência de técnicas e tratamentos alternativos ao uso medicinal do sangue, considerados até mesmo mais eficientes e isentos de riscos como os passíveis de ocorrer em uma transfusão sanguínea.
Ademais toda pessoa tem direito ao atendimento humanizado e acolhedor, realizado por profissionais qualificados, em ambiente limpo, confortável e acessível a todos livre de qualquer discriminação, restrição ou negação em virtude de (...) religião, bem como a garantia de que nas consultas, nos procedimentos diagnósticos, preventivos, cirúrgicos, terapêuticos e internações, o respeito aos seus valores éticos, culturais e religiosos. (BRASIL, PORTARIA 1.820 de 13-08-2009 MINISTÉRIO DA SAÚDE)
O que se pretende no caso das Testemunhas de Jeová, ao contrário do que se veicula não é a escolha entre vida e religião e sim entre um tratamento específico (a transfusão de Sangue) e outro que lhes dêem a possibilidade de preservar sua consciência religiosa fundada na doutrina bíblica da santidade do sangue. Tal assertiva encontra-se balizada nas palavras de Celso Ribeiro Bastos. (2000, p.4)
Tal direito de escolha foi recentemente ratificado pela portaria ministerial número 1820 de 13 de agosto de 2009, do Ministério da Saúde, que dispõe sobre os direitos e deveres dos usuários da saúde. No artigo 5º, caput e inciso V assegura-se que toda pessoa deve ter seus valores, cultura e direitos respeitados na relação com os serviços de saúde, garantindo-lhe o consentimento livre, voluntário e esclarecido, a quaisquer procedimentos diagnósticos, preventivos ou terapêuticos, considerando que o consentimento anteriormente dado poderá ser revogado a qualquer instante, por decisão livre e esclarecida.
Ademais, conforme salienta Cláudio da Silva Leiria (2009, p. 15), o direito vida dentro do ordenamento jurídico brasileiro não é absoluto, já que se admite matar em legítima defesa e estado de necessidade, permite-se o aborto, considerado infanticídio para as Testemunhas de Jeová, em determinadas condições e é autorizada a pena de morte em caso de guerra declarada. Segundo ele o direito a vida encontra limites no princípio da dignidade da pessoa humana de fato “é a dignidade da pessoa humana – e não a vida – um dos fundamentos da república”. Conforme se verifica na Constituição de 1988, no artigo 1º, caput, e inciso III.
Como já salientado anteriormente para uma Testemunha de Jeová, a transfusão forçada equivale a violentá-lo, não apenas ao seu corpo, como também na sua dignidade, na sua espiritualidade, no seu modo de vida.
De forma que ao se deparar com o caso das Testemunhas de Jeová o aplicador do direito ao decidir o caso concreto equivoca-se ao sopesar, sob o manto da ponderação de interesses, bem como da proporcionalidade, o princípio da liberdade religiosa com o direito a vida, pois fazendo assim chegará a uma falsa conclusão de que o direito a vida em detrimento da liberdade religiosa é a solução válida para o caso das Testemunhas de Jeová.
Para uma conclusão realmente apropriada a luz dos princípios informadores do Neoconstitucionalismo cabe ao operador do direito levar em conta que “não há colisão de direitos fundamentais (direito a vida X direito de liberdade religiosa), mas sim concorrência de direitos fundamentais, pois a conduta sujeita-se ao regime de dois direitos fundamentais de um só e mesmo titular.” (LEIRIA, 2009, p. 4)
Deve ainda, relacionar o caso à existência de alternativas à transfusão de sangue, por certo Bastos (2000, p. 8) aponta o seguinte:
(...) não se pode ver na recusa consciente das Testemunhas de Jeová em receber sangue uma forma de suicídio. Não se está aqui fazendo apologia ao “direito à morte”. Pelo contrário, esses fiéis prezam por demais a vida. Tanto é que procuram preservá-la, dirigindo-se aos hospitais, sendo devidamente examinados e diagnosticados por médicos, quando se encontram enfermos. Todos aceitam a grande maioria dos tratamentos médicos existentes, sendo que a única ressalva consiste no transfundir sangue.
Dando margem para a interpretação que realmente levará a uma conclusão verídica o autor arremata dizendo que:
(...) essa “recusa” também pode ser vista de outro modo: como um direito de escolher um tratamento isento de sangue. É este direito de escolha que se está discutindo aqui, e que deve ser reconhecido a todo e qualquer paciente, devendo o profissional da medicina levá-lo em consideração (...). Em suma, aqueles que aderem à orientação das Testemunhas de Jeová também pretendem, como todas as pessoas, continuar vivos. Apenas ocorre que também objetivam uma vida em paz consigo mesmo, sem que sua posição religiosa reste maculada.
Ademais sobre o direito a vida Pedro Lenza (2008, p. 595) faz a seguinte reflexão: “O direito à vida, previsto de forma genérica no art. 5º, caput, abrange tanto o direito de não ser morto, privado da vida, portanto, o direito de continuar vivo, como também o direito de ter uma vida digna”. (grifo nosso). José Afonso da Silva (2001, p. 201) permite vislumbra os aspectos intrínsecos da vida humana afirmando que: “A vida humana, que é objeto do direito assegurado no art. 5°, caput, integra-se de elementos materiais (físicos e psíquicos) e imateriais (espirituais)”. Destaca ainda os aspectos subjetivos que tal direito encerra ao dizer que “a vida é intimidade conosco mesmo, saber-se e dar-se conta de si mesmo, um assistir a si mesmo, e um tomar posição de si mesmo”
Celso Ribeiro Bastos (2000, p. 9) assinala que o direito a vida está atrelado à idéia de dignidade da pessoa humana e que no Brasil por força do art. 1º, inciso III da Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988, P.), pode-se buscar como fundamento da tutela estatal tanto um quanto o outro. Citando Fernando Ferreira dos Santos ele situa a origem do conceito de pessoa e de dignidade ao surgimento do Cristianismo de modo que:
Não há, nos povos antigos, o conceito de pessoa tal como o conhecemos hoje. O homem, para a filosofia grega, era um animal político ou social, como em Aristóteles, cujo ser era a cidadania, o fato de pertencer ao Estado, que estava em íntima conexão com o Cosmos, com a natureza [...]. O conceito de pessoa, como categoria espiritual, como subjetividade, que possui valor em si mesmo, como ser de fins absolutos, e que, em conseqüência, é possuidor de direitos subjetivos ou direitos fundamentais e possui dignidade, surge com o Cristianismo, com a chamada filosofia patrística, sendo depois desenvolvida pelos escolásticos. [...]A proclamação do valor distinto da pessoa humana terá como conseqüência lógica a afirmação de direitos específicos de cada homem, o reconhecimento de que, na vida social, ele, homem, não se confunde com a vida do Estado, além de provocar um deslocamento do Direito do plano do Estado para o plano do indivíduo, em busca do necessário equilíbrio entre a liberdade e autoridade.
Assim o bem jurídico do direito a vida deve necessariamente pautar-se em garantir a inviolabilidade da dignidade da pessoa humana.
Assim a despeito do que conclui a maioria das decisões proferidas pelos tribunais brasileiros a recusa das Testemunhas de Jeová não se constitui em afronta ao direito a vida antes é um exercício ao direito de escolha ao melhor tratamento de saúde, e, por conseguinte a uma vida digna, conforme garantia constitucional expressa.
De modo que é posto o seguinte:
Em decisão proferida no Agravo de Instrumento nº. 2004.002.13229, julgado no dia 05.10.2004 pela 18ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do RJ, que negou provimento ao recurso da agravante e autorizou a transfusão sangue com fundamento em iminente risco de vida e ignorou a existência de tratamentos alternativos disponíveis para sanar a enfermidade do paciente, fica evidente a carência de argumentos que balizam a decisão que negou provimento ao recurso. Aqui se tem a sensação que o despreparo e falta de conhecimento técnico dos médicos acerca da eficácia dos tratamentos alternativos, utilizados no mundo inteiro em procedimentos de alto risco é gritante. Aliás, no voto vencido proferido pelo Desembargador Marcos Antonio Ibraim, percebe-se certa indignação diante da frágil argumentação de violou direitos humanos fundamentais do paciente.
A decisão agravada, coonestada pelo entendimento da maioria, golpeou fundo, data máxima vênia, a dignidade humana da paciente que tem direito, legal e constitucionalmente garantido, a se recusar a receber tratamento desse jaez. (...). li e reli os autos e neles não se vê qualquer prova convincente de que se está diante de imediato risco de morte do paciente e mesmo a resposta que muito prudentemente, exigiu o iminente relator, sobre a possibilidade de terapias alternativas, foi respondida de forma evasiva pela médica, que afirmou que não há outra alternativa mais eficaz que a transfusão. Ora então há alternativa. (grifo nosso) (Agravo de Instrumento nº. 2004.002.13229, julgado no dia 05.10.2004 pela 18ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do RJ)
Ora diante das inúmeras possibilidades que o avanço tecnológico e cientifico tem colocado a disposição da sociedade, especialmente no campo da medicina, somente e ignorância e falta de preparo de um profissional da área medica poderia afirmar, sem titubear, que exista uma e somente uma alternativa para manutenção da vida diante de uma enfermidade. Ademais é cediço que vez por outra pacientes desenganados por médicos despreparados diante de um quadro que afirmam se irreversível do seu ponto de vista acabam por ter uma súbita e repentina recuperação. Desta feita é inadmissível que sirva de base para decisões envolvendo questões tão importantes e fundamentais o argumento de iminente risco de morte, caso não seja levado a cabo intervenção cirúrgica com uso de sangue humano.
De outra parte Leiria (2009, p. 26) menciona decisão proferida pelo  juiz Renato Luís Dresch, da 4ª Vara da Fazenda Pública Municipal de Belo Horizonte/MG, nos autos do processo 024.08.997938-9, que indeferiu um pedido de alvará feito pelo Hospital Odilon Behrens, requerendo autorização para fazer uma transfusão de sangue em uma paciente que pertencia à religião Testemunhas de Jeová, que não aceitava a transfusão, mesmo ciente do risco de vida que corria. Após passar por uma cirurgia, a paciente apresentava queda progressiva dos níveis de hemoglobina. Ele relata da seguinte forma o que a decisão proferida:


O magistrado assinalou que as autoridades públicas e o médico tem o poder e o dever de salvar a vida do paciente, desde que ela autorize ou não tenha condições de manifestar oposição. ‘Entretanto’, salientou, ‘estando a paciente consciente, e apresentando de forma lúcida a recusa, não pode o Estado impor-lhe obediência, já que isso poderia violar o seu estado de consciência e a própria dignidade da pessoa humana’. O juiz referiu que as Testemunhas de Jeová não se recusam a submeter a todo e qualquer tratamento clínico. A restrição diz respeito a qualquer tratamento que envolva a transfusão de sangue, especialmente quando existem outras formas alternativas de tratamento. Em trecho lapidar, o magistrado mencionou que no seu entendimento, resguardar o direito à vida implica, também, preservar os valores morais, espirituais e psicológicos’. O Dr. Dresch citou que, embora não fosse lícito à parte atentar contra a própria vida, a Constituição, em seu art. 5º, inciso IV, assegura, também, a inviolabilidade da liberdade de consciência e de crença, garantindo o livre exercício dos cultos religiosos. O juiz referiu que o recebimento do sangue pelo seguidor da corrente religiosa ‘o torna excluído do grupo social de seus pares e gera conflito de natureza familiar, que acaba por tornar inaceitável a convivência entre seus integrantes’. Em razão disso, e pela informação de que a paciente se encontrava lúcida, o juiz não autorizou a realização da transfusão de sangue, que estava sendo recusada por motivos religiosos: ‘Desta forma, tratando-se de pessoa que tem condições de discernir os efeitos da sua conduta, não se lhe pode obrigar a receber a transfusão’, concluiu o juiz.
De modo similar o Tribunal de Justiça de Minas Gerais reconheceu que é possível que uma Testemunha de Jeová não seja judicialmente obrigada pelo Estado a realizar transfusão de sangue, quando existem outras técnicas alternativas disponíveis para a serem utilizadas, como mostra o seguinte acórdão com o voto do Desembargador Alberto Vilas Boas:
EMENTA: PROCESSO CIVIL. CONSTITUCIONAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. TUTELA ANTECIPADA. CASO DAS TESTEMUNHAS DE JEOVÁ. PACIENTE EM TRATAMENTO QUIMIOTERÁPICO. TRANSFUSÃO DE SANGUE. DIREITO À VIDA. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. LIBERDADE DE CONSCIÊNCIA E DE CRENÇA. - No contexto do confronto entre o postulado da dignidade humana, o direito à vida, à liberdade de consciência e de crença, é possível que aquele que professa a religião denominada Testemunhas de Jeová não seja judicialmente compelido pelo Estado a realizar transfusão de sangue em tratamento quimioterápico, especialmente quando existem outras técnicas alternativas a serem exauridas para a preservação do sistema imunológico. - Hipótese na qual o paciente é pessoa lúcida, capaz e tem condições de autodeterminar-se, estando em alta hospitalar. (AGRAVO N° 1.0701.07.191519-6/001 - COMARCA DE UBERABA - MG)
É, portanto, imprescindível que se esgotem as possibilidades alternativas conforme delineado pelo o iminente desembargador Alberto Vilas Boas no voto proferido na decisão supra, antes de se afirmar que o sangue é o único meio apto a preservar a vida do paciente.
Por certo, reputo indispensável que sejam exauridos os procedimentos clínicos disponíveis perante a unidade hospitalar na qual se encontre internado o recorrente para obviar a transfusão de sangue no âmbito do tratamento quimioterápico. Consoante se observa dos autos, existem alternativas outras que podem contribuir para evitar que a transfusão de sangue seja utilizada como primeiro e último recurso quando o sistema imunológico do paciente exige alguma espécie de intervenção imediata. (AGRAVO N° 1.0701.07.191519-6/001 - COMARCA DE UBERABA - MG)
Sabiamente ele faz a correlação entre a o caso das Testemunhas de Jeová e o principio da dignidade da pessoa humana:
Aparentemente, o direito à vida não se exaure somente na mera existência biológica, sendo certo que a regra constitucional da dignidade da pessoa humana deve ser ajustada ao aludido preceito fundamental para encontrar-se convivência que pacifique os interesses das partes. Resguardar o direito à vida implica, também, em preservar os valores morais, espirituais e psicológicos que se lhe agregam. Faço esta observação, porquanto a recepção de sangue pelo seguidor da corrente religiosa Testemunhas de Jeová o torna excluído do grupo social de seus pares e gera conflito de natureza familiar que acaba por tornar inaceitável a convivência entre seus integrantes. Cria-se, portanto, um ambiente no qual a pessoa é tida como religiosamente indigna e que não merece a necessária acolhida em seu meio, como descrito em doutrina. (AGRAVO N° 1.0701.07.191519-6/001 - COMARCA DE UBERABA - MG)
Por fim faz correta aplicação do princípio da proporcionalidade e da ponderação diante do caso concreto:
É necessário, portanto, que se encontre uma solução que sopese o direito à vida e à autodeterminação que, no caso em julgamento, abrange o direito do agravante de buscar a concretização de sua convicção religiosa, desde que se encontre em estado de lucidez que autorize concluir que sua recusa é legítima. É conveniente deixar claro que as Testemunhas de Jeová não se recusam a submeter a todo e qualquer outro tratamento clínico, desde que não envolva a aludida transfusão; dessa forma, tratando-se de pessoa que tem condições de discernir os efeitos da sua conduta, não se lhe pode obrigar a receber a transfusão, especialmente quando existem outras formas alternativas de tratamento clínico. (AGRAVO N° 1.0701.07.191519-6/001 - COMARCA DE UBERABA - MG)
Conforme demonstrado, relacionando a recusa à transfusão de sangue por motivo de crença de religiosa, como ocorre com as Testemunhas de Jeová, a todos os aspectos que tal questão encerra, a saber, a preservação da dignidade humana, o direito a autodeterminação, a existência de tratamentos alternativos ao uso do sangue, o direito a liberdade de consciência, crença e culto religioso é possível se chegar a uma decisão que permita equilibrar o direito a vida ao direito a liberdade religiosa.
Por meio do princípio constitucional da proporcionalidade e pelo postulado da dignidade da pessoa humana, conforme todo o exposto, a decisão que permite a transfusão de sangue forçada em pacientes Testemunhas de Jeová como a que ocorreu com Ana Paz do Rosário, em Porto Rico, no ano de 1976, quando a mesma aceitou submeter-se a uma cirurgia com a ressalva de que fosse realizada sem sangue, mas que, porém, acabou sendo amarrada por policiais e enfermeiras, que estavam munidos de uma ordem judicial autorizando a transfusão, é inadmissível do ponto de vista da Constituição Federal de 1988. (SÁ, 2009, p. 325)
Ressalte-se que Ana, após receber a transfusão entrou em choque e morreu, sem ter tido o direito a ver respeitada sua vontade dirigida a seu próprio corpo, e que lhe conferiria a dignidade almejada.
Levando-se em conta os interesses em jogo no caso das Testemunhas de Jeová, a proporção adequada ao caso concreto certamente não é aquela que condena o paciente a uma vida indigna, excluído de seus pares, e violentado na sua essência.
Pelo que se infere de tal princípio informador dessa nova era do constitucionalismo brasileiro, sopesar direito a vida X liberdade religiosa é comparado a assimilar um elefante a uma formiga, pois o direito a vida sempre esmagará o direito a liberdade religiosa, posto que a vida tem valor superior para o individuo, mesmo aqueles que, por meio da sua fé, consideram a morte apenas a uma passagem para outra vida, uma vida inclusive superior, imortal, no céu ao lado de Cristo, sem sofrimento, sem angustias, e sem as dores que este mundo, dominado pelo egoísmo e pela prepotência dos homens, tem causado a toda humanidade, se recusam a aceitar a interrupção súbita da vida, não desejam absolutamente a morte, as Testemunhas de Jeová também não desejam morrer, desejam viver, mas viver com dignidade.   



5 CONCLUSÃO
Médicos e cientistas abalizados de várias partes do mundo reconhecem hoje, que o uso terapêutico do sangue nuca atingiu os objetivos para o qual fora indicado pelo contrário pesquisas mostram que ele pode se tornar um veneno mortal, dentro do organismo do receptor. A medicina oferece mecanismos que podem descartar a bolsa sanguínea, como por exemplo, o aparelho Cell save (salvador de células), que aspira o sangue do ferido, limpa e devolve a substância purificada ao paciente, esse aparelho permite que paciente receba o próprio sangue, sem necessidade de doação por terceiros, outra opção são as cirurgias minimamente invasivas por laparoscopia, em que não há grandes cortes nem sangramento, apenas pequenos furos em pontos estratégicos, capazes de atingir órgãos como fígado, rins, pulmões e até coração. O uso de tais alternativas médicas às transfusões de sangue é cada vez mais comum o que demonstra que atender ao caso das Testemunhas de Jeová não é algo fora da realidade.
Para tornar as alternativas ao sangue amplamente difundidas, as Testemunhas de Jeová organizaram uma rede de âmbito internacional chamada Comissão de Ligação com Hospitais (COLIH), que atuam em 236 países e territórios auxiliando na transferência de pacientes para hospitais ou equipes médicas que usam alternativas às transfusões de sangue. Também fazem trabalho de esclarecimento junto aos profissionais de saúde quanto a esses tratamentos alternativos, bem como em relação aos riscos das transfusões de sangue, promovem ainda um intercambio de informações entre médicos especializados em tratamento sem sangue e os que não dominam tais técnicas, facilitam o acesso de hospitais e equipes médicas aos medicamentos e máquinas que possibilitam o descarte do uso de sangue. Com isso esperam desfazer alguns preconceitos e tornar a relação médico-paciente mais cooperativa e menos dolorosa possível.
Entretanto a legislação brasileira deixa brechas para o conflito entre médicos e Testemunhas de Jeová. O Código de Ética Médica, de 1981, manda que a vontade do paciente deva ser respeitada desde que não comprometa a vida dele. No Novo Código Civil, de 2002, consta que o paciente tem total autonomia para recusar procedimentos mesmo depois de informado das consequências. Já o Código Penal, de 1940, estabelece que, em risco de morte, o médico pode e deve adotar procedimento médico ou cirúrgico necessário sem consentimento do doente ou seu representante legal. A portaria do Ministério da Saúde nº 1820 de 13/08/2009, garante o direito de escolha ao paciente a tratamento de saúde devendo ser informado das alternativas existentes podendo recusar qualquer delas. A Constituição garante o direito à liberdade de crença e culto religioso, assegura ainda o direito à privacidade tendo como fundamento a dignidade humana.
A fim de resolver o conflito resultante das disparidades legislativas existentes no ordenamento jurídico brasileiro, o Neoconstitucionalismo emerge no cenário nacional, com advento da Constituição Federal de 1988, trazendo os mecanismos que possibilitam aplicar a justiça ao caso concreto.
Aplicando ao caso das Testemunhas de Jeová a ponderação de interesses fundamentais, o principio da razoabilidade e da proporcionalidade é possível, conectar o direito a ética e a moral e efetivar a justiça possibilitando que aquele que recusa transfusão de sangue por motivos religiosos não seja privado da sua dignidade por meio da invasão que tal decisão representa.  
Ademais tal recusa não representa absolutamente, uma afronta ao direito à vida e sim o exercício do direito a escolha entre e outro tratamento de saúde. Fica claro, portanto, que neste aspecto, muitos médicos preferem a “lei do menor esforço”, já que tratamento médico sem sangue exige técnica, exatidão, cuidado meticuloso, tempo, preparo e aperfeiçoamento das técnicas tradicionais, atributos que muitas vezes estes não dominam. Percebe-se ainda que o Estado, a despeito da sua função de ofertar saúde de qualidade, não disponibiliza os recursos necessários a fim de que o médico, no exercício da sua profissão possa indicar ao paciente as opções compatíveis com a consciência religiosa por meio da qual se orienta. 
Certo é que ao invés de oferecer os mecanismos que possibilitem a realização dos direitos do paciente Testemunha de Jeová o Estado lhe tem infligido a punição de viver sem dignidade, despindo-o de seus valores morais, éticos e religiosos, através de decisões judiciais autorizando a realização forçada de transfusão de sangue, o que representa, no limiar deste século XXI, uma ignominiosa violação dos princípios de justiça e dignidade humana que rege o ordenamento jurídico brasileiro. 
Com tal visão, totalmente despida de preconceito, almeja-se desfazer alguns mitos e destacar, para a sociedade a relevância do tema para as Testemunhas de Jeová, despertando nos operadores do direito o desejo em colaborar para que se realize o seu desejo qual seja preservar sua relação com o “Todo Poderoso”, Deus Jeová, por meio da obediência as suas leis que é uma expressão do seu amor abnegado.
Contudo o assunto não se esgota ficando a cargo dos detentores do saber jurídico discorrer sobre o tema enfocando novos pontos vista, como por exemplo, sob a ótica do profissional da medicina que não raro se confronta com os dilemas provocados pelos desafios de sua profissão, bem como o dever do Estado de prover tratamento de saúde de qualidade disponibilizando os recursos necessários afim de que se realize a vontade do paciente, podendo até mesmo utilizar o direito comparado, tendo em vista que nos Estados Unidos e na Europa o que prevalece nestes casos e a escolha e o direito do paciente.       







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